Hoje é só um dia que o trem não irá enfeitar sua vida. O dia amanheceu
sem alegria, a chuva embaça a janela por onde seus olhos procuram o céu
para saber se está claro para poder sonhar com seu trem no quintal. Hoje a
chuva embaça seus sonhos de liberdade no apito que invade o espaço cortando o
ar com a delicadeza de sua voz. Seus olhos já estão embaçados como a janela
pelas lágrimas que escorrem pelo rosto, pelo desgosto.
Nesses dias de chuva o pequeno quintal de sua casa passa ser como um horizonte
longe demais, então sua sala seria o lugar para seu trem. Se tivesse um
trem de brinquedo, pegaria a máquina e tiraria a poeira com um pequenino
espanador, pegaria uma flanela e daria um brilho para ficar bonita como uma
princesa de aço, limparia o vagão de lenha e depois os vagões de carga, que
seriam dois e por fim os três de passageiros, sim, seria um trem grande,
bonito, vistoso. Armaria a estrada de ferro pela sala, emendando pedaço com
pedaço, sem pressa, passando a estrada por trás da estante, do sofá, das
poltronas e pelo meio da sala, ali seria como o deserto, uma pradaria sem fim,
cercada de nada por todos os lados, pelos fantasmas da sede e da solidão, pela
noite fria e pelo dia escaldante, com o sol brilhando com toda sua beleza e sua
força, assim os passageiros iriam sentir toda a solidão que existe no deserto,
no deserto dos lobos, das pessoas, dos poetas, até a caixa d’água, sim, ele não
esqueceria a caixa d’água no meio do deserto, ela iria matar a sede do trem e
das pessoas, sua sede de brincar, sua sede de amar cada pedaço do trem, sua
sede de viver cada minuto da sua infância, depois de matar a sede todos iriam
seguir viagem pelo meio da sala, meio do nada, do quadro pintado ao seu
redor, medo de ficar só.Depois de algum tempo de viagem, iriam avistar o
povoado, o trem apitando, as pessoas se aglomerando na estação, estação onde
chegavam sonhos, de onde partiam sonhos, estação de todos, estação de ninguém,
estação de trem, mas não havia trem, apenas uma sala vazia, vazia como sua
infância, por onde perambula, por onde só pode ficar com seus pensamentos de um
dia ir adiante. Seu olhar só quer fitar os pingos da chuva, tentar enxergar
quando passar, para saber se ainda poderá viver, poderá brincar, brincar com
seu trem feito de madeira, pedaços de madeira, feito de imaginação, feito de
coração, então quando a chuva passar, correrá para o quintal, nem mesmo
esperará a terra secar, e montará seu trem com os pedaços de madeira, com os
pedaços de sua história, que um dia há de se montar e se mostrar.
O menino ficou ali observando a chuva pela janela embaçada, as nuvens negras
que escondiam o sol, que cobriam o céu, os raios que cortavam sua esperança,
como a realidade adulta corta os sonhos de criança. A noite caiu, não tinham
estrelas, olhou mais uma vez pela janela, sentiu o frio do desencanto e
resolveu entregar-se ao sono, deitou-se desejando sonhar com um dia de sol, que
enfeitaria seu quintal para poder sentir alegria no seu coração e montar seu
trem de madeira, seu trem feito de ilusão.
Arnoldo
Pimentel
Esse conto faz parte da Trilogia dos Meninos
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